Contos

Lisa

Ela passa mais uma vez com a camisa do Santos. A camisa 10, provavelmente uma alusão a Pelé. Talvez nem mesmo torça para o Santos. Talvez nem mesmo goste de futebol tanto assim... A filha do Belarmino, a Lisa. De cabelos curtos e castanhos, quase loiros, com os lábios exibindo um marcante batom vermelho, Lisa caminha até a loja de celular.

"Essa cidade é uma droga, não vale nada. Essa loja, pior ainda. Mas já que é a que tem, fazer o quê, né?"

- Boa noite.

- Boa noite. Queria um celular com câmera e MP3.

"Só quero um celular que preste. Mas ou é caro demais ou não presta. Essa vida é uma droga!"

Lisa sai da loja com cara de raiva. Sem o celular, o que talvez justifique seu humor. Se bem que, vendo com um pouco mais de atenção não é difícil perceber que ela já havia entrado assim naquela loja.

"Esse pessoal não sabe atender direito. Se eu fosse dona dessa loja mudava esses vendedores na hora!"

Segue preocupada com o trabalho para a universidade. Mais uma vez ficou numa equipe de escorões e terá que fazer todo o trabalho sozinha.

"Aquele Max pensa que não tenho o que fazer na vida. Nunca vi ele fazer nada na equipe, trabalho nenhum. Sempre sobra pra mim. Um dia eles me pagam!"

De noite a volta da Universidade e uma chuva infernal a pega no caminho. Lisa passa do outro lado da rua, perto da lanchonete, vista por dois pares de olhos.

- Conhece ela? - Uma ruiva pergunta apontando para Lisa, ao homem do seu lado, no balcão da lanchonete onde comem pastéis com guaraná.

- Conheço sim. É a Lisa, estuda comigo.

- É estressada ela, não é?

- Mais ou menos. É uma pessoa legal, apesar de às vezes ser meio chata é bem divertida.

- Ela esteve lá na loja hoje pra comprar um celular.

- E foi? Ela disse mesmo que precisava mudar que o dela estava muito velho.

- Pois é, só que ela não gostou de nenhum. Ofereci todos que tinha com MP3 e câmera como ela queria, mas ela sempre achava um defeito. E ainda me culpou por não ter um que ela gostasse lá.

- É, ela é assim mesmo... Já me acostumei. Quando cisma com uma coisa... Você acredita que ela não deixa mais eu ajudar nos trabalhos da faculdade? Teve uma vez que a gente tirou oito em um trabalho e ela diz que a culpa foi minha: queria um dez. De lá pra cá não deixa mais eu fazer nada.

- Então aproveite, já que ela quer fazer tudo sozinha...

- Mas é chato isso. Ontem eu só faltei implorar pra ela me dar uma parte pra fazer, porque não é justo. Sabe o que ela me disse?

- O quê?

- Deixe que eu faço que se você fizer não vai sair nada que preste.

- Então deixe! Pra que se aborrecer com isso?!

- É, né? Pelo menos tem um lado bom. Se eu tivesse fazendo esse trabalho não podia passar a noite com você...

- Que história é essa, Max?!

- Ué, vamos! A gente dá uma esticadinha até ali. Conheço um motel bem bacana...

- E o que fez você pensar que eu iria?

- Ué, não quer ir?

- Tá, eu vou.

-- Cárlisson Galdino


Heróis Nerds

Este é o piloto de uma história de heróis nerds ainda sem nome. Comentem! O que acham? Continuo? Que nome uso? Com vocês, a história!


Cidade de Stringtown. Mais uma grande cidade no moderno mundo globalizado. No interior do Brasil, estado da Bahia. Lá se encontra um pólo industrial voltado à tecnologia e, neste pólo, a Sysatom Technology.

Mais uma empresa de tecnologia, especializada na fabricação de microchips. Não fosse seu projeto ationvir, uma forma de vida que convive com circuitos e é capaz de prevenir defeitos. Infelizmente, o projeto não progrediu. Apesar de relativo sucesso na ação e interação com os circuitos da Sysatom, a ationvir não conseguia se reproduzir em ambiente algum. Até agora...


Valdid: Então, véi? Alguma novidade no ationvir?

Arsen: Mais tarde farei um novo teste. Estou projetando uma inversão na cadeia genética, acrescentando alguns genes novos. Esse lance de induzir mutações e esperar que uma funcione realmente não está surtindo efeito.

Louise: kkkkkkkkk. Eu disse! Eu falei! Isso parece uma versão “bozosort” aplicada à genética!

Arsen: Cala a boca, fía! Mulher não entende de tecnologia não.

Louise: Ah, vai se foder!

Arsen: Chegou o casalzinho!

Darrell: Oliver quer falar com você, Arsen. O projeto está demorando muito pra sair do canto.

Pandora: Ó, mas vai dar tudo certo...

Arsen: É, para o nosso bem, sinceramente espero que sim.


O dia passa rápido com tanto trabalho pela frente. E como nos outros dias, a jornada chega ao fim.

Valdid: E aí, cara... Conseguiu compilar?

Arsen: Manipulação genética não é programação...

Valdid: Sim, pra mim é a mesma coisa.

Arsen: Tá, desisto. A adição do novo gene não foi tão simples quanto pensei. Só terminei agora. Os testes só vai dar pra fazer amanhã.

Pandora: Ah, então amanhã a gente vê o resultado, né? Eu e Darrell tamos saindo pra balada. Qrem vem com a gente?

Louise: Opa! Tou dentro! Vão pra onde?

Darrell: Vai ter Pastor João.

Valdid: Ah, vão se lascar vocês! Pregação?

Darrell: É só uma banda que faz cover do Raul, ué!

Valdid: Piorou! Preferia a pregação.

 

Oliver: Arsen, como vai a pesquisa?

Arsen: E aí, chefe, está indo... Falta só colocar em prática. Amanhã cedinho a gente...

Oliver: Hoje. Quanto tempo leva isso?

Arsen: Não leva menos que meia hora.

Oliver: Tudo bem, vamos ver se dá certo. Conta uma hora extra e manda ver aí.

Arsen: Tudo bem... Então vamos. Louise? Vamos lá?

Pandora: Vamos esperar a Louise então, não é, bem?

Darrell: Por mim tudo bem.

Valdid: Então vou ficar por aqui também! Tou curioso com esse troço aí.

Oliver: Então aproveitem. Este acontecimento pode nos colocar no topo do mundo! Que comece o show!


Manhã em Stringtown. Sede da Sysatom Technology. “Ruínas da sede” seria a expressão mais apropriada...

anônimo-com-voz-bestial: Alguém vivo?

Um grande bloco de concreto rola e de baixo surge um monstro peludo com cabeça de touro.

anônimo-com-voz-bestial: Que porra é essa?! O que aconteceu comigo!?

anônima-com-voz-distorcida: Ai, meu Senhor do Bonfim! O que aconteceu aqui!? Tá tudo destruído!? Benzinho?

Uma mulher em cima de destroços do outro lado olha o estrago provocado pelo acidente.

anônimo-com-voz-bestial2: O que aconteceu aqui?

anônimo-com-voz-metálica: Parece que a experiência não saiu exatamente como eu esperava.

anônimo-com-voz-bestial2: O que aconteceu conosco! Não era pra esse vírus afetar pessoas. Ationvir maldito! O que fez com a gente!?

anônimo-com-voz-metálica: Acalme-se, Arsen. O que você conseguiu é algo sem precedentes.

Arsen: Chefe?

Oliver: Sim, sou eu. E digo que esse feito realmente vai mudar a história da Sysatom Technology.

Arsen: O que houve? Ganhamos super-poderes ou algo assim?

Oliver: Diria que no mínimo algo assim.

São duas criaturas enormes que conversam. Cada um com três metro de altura. Um ser formado por pedras e um homem de metal.

Arsen: E o que vai ser agora?

Oliver: Agora o mundo é nosso!

anônimo-com-voz-bestial: Ô que papo de nazista é esse agora?

Oliver: Deixe-me ver... Valdid?

Valdid: Acertou. Que história é essa de “o mundo é nosso”?

Oliver: Não há alternativa. Queríamos dominação mundial do mercado com tecnologia. Agora temos ferramentas, digamos, mais eficazes para conseguir isso.

Valdid: Sei não, véi, isso parece errado.

Oliver: Vamos debater sobre o tema.

Uma mão segura o braço da mulher de voz distorcida, que observava espantada a cena. Logo eles estão na Praça Pimentel. O Sol ilumina as árvores e, no centro, diante do busto do antigo médico, um casal se encontra. Darrell Dylan e Pandora Vardamir. É fácil identificar, apesar de haver algo neles de diferente.

Pandora-com-voz-metálica: Você ouviu aquilo, bem?

Darrell: Claro que ouvi. Por isso te trouxe pra cá. Oliver enlouqueceu.

Pandora: Como assim? E acha normal ver um sujeito de ferro e um pedregulho conversando? E a minha voz? Eu gosto da minha voz de sempre, por que ela ficou assim? Estou ficando louca...

Darrell: É uma possibilidade.

Pandora: Grande namorado você é. Nem pra me consolar nesse momento difícil...

Darrell: Valdid, Oliver, Arsen... Você viu a Louuise?

Pandora: Que cara de pau? E ainda me pergunta por outra mulher!?

Darrell: Ô Pandora, o momento não é pra drama... É sério, não a vi por lá.

Pandora: E eu com isso? Devia ser um daqueles postes ou uma poça de lama. Dá pra me ouvir agora?

Darrell: Fala.

Pandora: Ah, sei mais não o que ia dizer, ó! Que é que vou dizer pra mainha...


Mas o que eles não sabem é que Oliver reuniu todo o grupo, ou melhor, os outros funcionários da empresa. E como Darrell conseguiu levar Pandora até a praça sem serem vistos? Calma, tudo a seu tempo... Na sede, Oliver e companhia discutem os últimos acontecimentos.

Valdid: Ei, soube que o Google vai lançar um Sistema Operacional ano que vem?

Arsen: E o Kiko?

Oliver: Arsen, me diga o que aconteceu conosco exatamente.

Arsen: Sei lá, o ationvir deve ter dado um revestrés e infectou a gente.

Oliver: Mas o vírus existia em pouca quantidade. E o maior problema é que não se reproduzia. Significa que resolvemos o problema?

Arsen: Ainda é muito cedo para dizer. Mas era pra ele afetar apenas circuitos. Não tem o menor sentido o ationvir afetar a gente. Menos ainda a gente ficar desse jeito.

Valdid: Bem-vindo ao meu mundo. Quando eu digo que os bugs que aparecem nos meus programas às vezes não têm o menor sentido ninguém acredita...

Oliver: Quietos os dois. Então temos que começar testando. Valdid, sequestre alguém para cá. Temos que estudar se o ationvir vai continuar o contágio e as formas de contágio. Já pensou? Um mundo onde todos têm superpoderes... Ia ser um tanto problemático.

Valdid: Com certeza! Vou lá buscar alguém.

Mulher-com-voz-fraca-estranha: O que pretende fazer se nós formos os únicos?

Ela parece feita de gelatina, sentada numa mesa quebrada.

Oliver: Simples, Louise. Esconderemos o processo que nos transformou e traçaremos uma estratégia para dominar o mundo.

Louise: E o que se ganha com isso?

Oliver: Dinheiro! Poder! Respeito! Reconhecimento!

Louise: Mas se nós formos seres únicos já teremos isso naturalmente, não?

Oliver: Ah, não atrapalhe minha argumentação sobre dominação mundial! Algo que tanta gente já desejou tem que ter sua utilidade! Temos outra coisa mais importante com que nos preocupar. Questão de marketing: precisamos de nomes legais. Alguém aqui lê quadrinhos?

Valdid: Vou me chamar Minotaur!

Oliver: O que está fazendo aqui! Mandei sequestrar alguém!

Valdid: Tá, chefe, esquenta não que tou indo agora! Pô, posso nem participar da parte mais divertida da discussão?

Oliver: Vai logo, chifrudo!

Valdid: Ei, piada com isso é golpe baixo!

Arsen: Acho que Montanha está bem para mim.

Oliver: É, parece legal. Eu serei o Homem de Ferro

Arsen: Hmmm... Chefe? Já existe esse...

Oliver: Já? Que pena... Bom, então... Já sei! O W! No mundo Web, o W será minha letra símbolo! Eu serei Tungstênio, o elemento químico representado pela letra W!

Arsen: Chefe... Genial! Me emocionei agora.

Oliver: Falta você, Louise.

Louise: Preciso mesmo de um nome?

Oliver: Claro!

Arsen: Podia ser “mulher fluída”! Kkkkkk

Louise: Sem graça!

Oliver: E então?

Louise: Hmmm... Seamonkey.

Arsen: Que é isso?

Louise: É um bicho do mar daqueles que parecem de água. Como uma água viva ou medusa.

Arsen: E por que não medusa?

Louise: Medusa é muito balofa...

Oliver: Tá, tá... Se prefere ser uma macaca do mar, Seamonkey então. Agora alguém viu Darrell e Pandora? Onde aqueles dois se meteram?


Continua...?

 

-- Cárlisson Galdino

 


Uma Noite na Taverna do Silício


Num vale entre montanhas inacessíveis, numa pequena vila ao redor do verde manto de árvores que recobre aquelas montanhas, muita coisa acontece. Um lugar muito pequeno na imensidão do mundo, mas com uma imensidão de coisas para contar. Um lugar importante.

São sete horas da noite na Taverna Silício quando entra um homem de terno colorido e chapéu. Ele se senta ao balcão. Apreensivo, olha para os lados, com seu queixo pontiagudo. Tira do bolso o relógio de ouro preso à corrente no sinto e confere as horas.

O bar está quase vazio a essa hora. Pelo menos vazio das pessoas que ele conhece com que lidava no passado. Sempre foi encrenqueiro, mas raramente perdia uma disputa. Nem que precisasse pagar o xerife pra isso, o barman e juntar amigos com sua imensa fortuna. Não era à toa que ele, mesmo em um lugar tão escondido, era um dos homens mais ricos de todo o
planeta.

- Me traz uma coca-cola e um whisky xyz.

- Tá aqui, meu patrão.

- A vida tá uma droga, Jonas!

- Vão mal os negócios? A rede de suporte para escritórios e a fábrica de janelas estão com problemas?

- De jeito algum! Vai tudo muito bem!

- Então o quê?

- Eles estão deixando de gostar de mim, aos poucos...

- Como assim?

- Ainda lembro daquele marinheiro, lembra? Acho que se chamava Netune Skaeyph.

- Lembro sim. Era antigo na casa. Mas o senhor me desculpe, mas o senhor judiou muito dele.

- É, eu sei... Mas ele estava invadindo meu território e eu tinha que tomar uma providência.

- Sei como é, patrão. Até hoje ninguém sabe quem incendiou o barco dele, não é? Foi uma confusão tão grande que até o xerife foi expulso e botaram outro. E ele dizia que era você que tinha queimado, vejam só!

- Intriga, Jonas. Intriga...

- É sim. E ouvi dizer que ele está muito bem estabelecido lá na Libéria. Que agora adotou outro nome, acho que foi Fênix ou Minotauro, algo assim...

- É, estou sabendo. Naverdade esses são miseráveis filhos dele, que hoje têm outros nomes, mas não vem ao caso. O caso é que estão todos indo embora, Jonas! Todos!

- Libéria... O que tem demais essa terra?

- É, Jonas, não sei. E tem muitos clientes querendo que eu me mude pra lá.

- E o senhor vai, senhor Michel?

- Não! Já mandei uns funcionários lá, mas querem que eu vá. E eu sei que se eu for vou terminar destruindo tudo o que fiz até hoje...

- Então fica por aqui mesmo! A Taverna Silício do Vale estará sempre aberta para o senhor.

- É, mas todos estão indo para lá... Já foi o Sam e com seu filho, o Breno Alves, lá ele abriu uma empresa que está querendo me derrubar na assistência aos escritórios... E eu soube que até o filho dela, o Djavan, também se mudou pra Libéria.

- É, parece que a Libéria tá ficando animada, patrão!

- Sem contar um pessoal que fica me atazanando de lá. Tem um povo estranho, um índio apache, um dançarino de samba...

- E o Linus?

- Não fale esse nome, Jonas! Não fale esse nome!

- Tá, desculpa, chefe!

Ele abaixa a cabeça um pouco.

- Patrão? Por que o senhor não vai pra lá então? O senhor daqui e eles de lá, eles podem ganhar o mercado do senhor praquelas bandas!

- Não dá, Jonas. O governo de lá tem regras diferentes do governo daqui. Mas eu ainda derrubo o governo deles. Presidente Gopp Lefft... Eu acabo com ele, Jonas! Ele e aquelas leis estúpidas! Acabo com ele ou não me chamo Michel Sófocles!

-- Cárlisson Galdino

P.S.: Este conto foi publicado na Revista Espírito Livre #01. A imagem que ilustra o post foi retirada de página da revista.


Espanhola

- Por que essa faca é diferente?!

- É uma faca para caçar. Vê essa curva suave que ela faz? É pra machucar mais quando a gente fere um animal... Ou alguém.

- Nossa! Que crueldade!

- O mundo lá fora é perigoso, moleque. Aqui você sempre vê animais, mas está tudo sempre sob controle. O mundo lá fora não é um circo.

- E essa? Outra faca de caça?

- De certo modo... É um modelo espanhol. Veja como é bem melhor acabada que a outra.

- E essa fininha? Parece um candelabro...

- Ah, essa não é faca. Não corta, é só pra furar. É uma adaga. Essa aqui é alemã.

- Em todo o mundo se fabrica arma?

- Lutar é algo necessário para o ser humano, assim como é para os animais.

- Mas isso é tão cruel, tão...

- Você é muito pequeno pra entender.

- As pessoas não podem ser tão cruéis no mundo todo...

- Mas são, e costumam ser ainda mais.

Com seu cabelo e barba loiros, aquele forte guerreiro de ar tão nobre e digno de admiração se ergue e afasta aos poucos. As manchas do circo vão ao seu encontro - e conversam, dando-lhe a atenção que parece lhe fazer tanto bem.

Maomé entende bem como é isso. Não importa que só tenha sete anos, seu talento sempre foi elogiado como o palhaço Remédio. E ele sabe como elogios são bons.

Maomé não liga pra ser chamado de moleque, nem por ter sido deixado pelo Xisto porque este queria ainda mais atenção. A única coisa que realmente importa é sua mãe.

- Maomé, querido. - Sua mãe o envolve nos braços num abraço quente e carinhoso. É como se estivesse protegido de todos os perigos do mundo. Beija-lhe a cabeça e continua abraçando...

- Mãe, por que o Cajú faz isso?

- Isso o quê, filho?

- Toda vez esquece a fala dele!

- Ah, filho, ele é assim mesmo! Não é tão inteligente quanto você.

- Mas ele já é grande! Tem quinze anos! Devia ser menos burro!

- Liga pra ele não, filhão. As pessoas são diferentes mesmo. Se preocupe com seu papel como vem se preocupando. Toda vez elogiam você e você sabe disso!

Maomé se afasta pra olhar nos olhos da mãe.

- Se ele nunca errasse, talvez eu não fosse mais famoso que ele, né mãe? Se ele se esforçasse tanto quanto eu.

- É, filhão, talvez. - Ela o abraça novamente e Maomé suspira, confortado.

- Mas eu queria que o número da gente ficasse perfeito...

Novamente Maomé se vê sentado, sozinho, ao frio da noite. Cenas assim tão freqüentes no passado nunca mais se repetiram. Já há quase um mês sua mãe o trocou por esse Xisto...

No início deu raiva, mas depois... Maomé admira Xisto, de certo modo. Uma parte de Maomé quer ser Xisto quando crescer.

Mas sua mãe não ligava mais para ele desde que o Xisto apareceu. Maomé já tentou fazer cena, chorar, espernear, mas não houve jeito. Sua mãe parecia outra pessoa e nenhum truque que ele já conhecia voltou a funcionar. A aliança...

A passos suaves, Maomé caminha pelo quarto de sua mãe. Na cabeça, dezenas de histórias de fadas e magia, e a certeza de que aquela aliança no dedo de sua mãe traz algum tipo de encantamento.

- Maomé, o que está fazendo? - Quando seus dedos tocaram o anel, sua mãe acordou furiosa. - Essa não foi a educação que te dei! Vai ficar de castigo!

Hoje, à luz da Lua, a idéia de que o presente de Xisto que enfeita os dedos da sua mãe faz mais do que enfeitar ainda persiste.

Tanta coisa Maomé já viu com a imaginação... A cena mais recente era Xisto sendo morto por suas mãos.

Mas Maomé não seria capaz de fazer isso, seria? Também não dá pra ver sua mãe aos pés desse homem, que nem parece gostar assim dela, simplesmente aproveita.

Desde a chegada de Xisto, Maomé perdeu o trono. O amor da sua mãe, parte da atenção dos seus amigos e dos amigos de sua mãe. Tudo agora gira em torno de Xisto e não é assim que as coisas devem ser.

Maomé se levanta decidido. Seria capaz de fazer isso? Nem Maomé sabe, mas está disposto a descobrir.

A faca espanhola está na sua mão. Xisto deixou sua coleção espalhada pela mesa. Passos lentos seguem entre as sombras com insegurança e inquietude disfarçadas de frieza.

À porta do quarto, Maomé vê aquele homem deitado sobre sua mãe. Entre dúvidas e pensamentos, seus olhos inseguros encontram os de Xisto.

Nos olhos de Xisto, Maomé vê raiva e um brilho estranho. O brilho da morte. E corre. Deixa o lar e corre. Deixa o acampamento. Corre e corre como em tantas cenas lá no circo. Mas dessa vez não tem graça. Corre tentando se desvencilhar dos olhos de Xisto.

Maomé corria sem saber pra onde. Corria sem saber até quando. Sem saber que aqueles olhos nunca mais o deixariam em paz. Como quem foge de si mesmo. E atravessou montanhas e desertos, mundos estranhos, de vivos, de mortos. Maomé e sua companheira espanhola, que de tanto o guiar terminou que adentraram a Espanha.

Os anos vieram e, como quem não quer nada, logo transforamaram aquele menino num homem, a despeito das dificuldades que nunca deixaram de atravessar o seu caminho.

- Me dá uma dose!

- Você está péssimo hoje, Maomé!

- Você também estaria se tivesse sido chutado por sua mulher como fui pela Clara.

- A Clara... Te falei que era problemática.

- Dá pra trazer o goró logo? Ou aqui deixou de ser bar e virou igreja e eu estou num confessionário?

- Aqui está. ...Mas você não sabe nada dela. Ela está na cidade há menos de um ano.

- E daí?!

- Ninguém sabe nem se ela tem família.

- Claro que tem.

- E quem são?

- Não sei. De outra terra. A mãe dela morreu quando ela nasceu, mas tem o pai.

- Ela é bem mais nova que você, uns dez anos suponho...

- Não exagere!

- Estou errado?

- Claro que está! Ela é só oito anos mais nova!

- Grande diferença...

- Claro que faz diferença! E nem importa. Nunca encontrei uma mulher assim e isso é o que vale.

- Além do mais, dizem que...

- O quê!?

- Melhor não, deixa...

- Vocë agora vai dizer!

- E essa faca!? Maomé, o que...

- Diga, Jonas...

- Está bem... Dizem que ela... Só está com você por causa do seu emprego no porto.

- É, dizem é?!

- É...

Maomé se senta triste e toma sua bebida.

- É, talvez seja isso mesmo... Jonas, me traga outra dose. Aliás, traz a garrafa. E se não quiser andar muito esta noite, economize passos trazendo logo mais de uma.

- Homem, não vale a pena tanto por uma mulher. Outras virão...

- Não, Jonas! Outras já vieram! Ela é única! Inteligente, a melhor que já vi na cama. Tínhamos tantos planos...

- Mas que diabo! Que foi que houve afinal? Já que não vai me deixar atender os outros frequeses enquanto não me contar o que aconteceu, vê se desembucha logo!

Maomé lhe estende um papel amassado.

- "Mezito"?

- É como ela me chamava.

- "Mezito, preciso viajar para resolver assuntos urgentes de família. Talvez nunca mais te veja novamente. Foi muito bom te conhecer. Espero poder voltar em breve. Você está no meu coração. Clara."

- Viu? Me dá aqui. - E guarda o bilhete no bolso.

- Meu amigo, só tenho uma coisa a te dizer.

- O quê?

- Você é muito engraçado. Esse drama todo por conta desse bilhete? Ela está viajando.

- Duvido muito! Ela só estava buscando uma forma de dar a notícia que não me quer mais.

- Que dramático...

- Pensa diferente?

- Claro!

- Você é muito ingênuo para os ardis femininos.

- Tá, grande profeta, já pensou em visitar a Clara?

- E ser rejeitado em pessoa? Não, obrigado.

- Prefere viver na incerteza?

- Que incerteza?

- Ela gosta de você.

- Tá, e se ela me rejeitar?

- Aí você olha bem fundo nos olhos dela e diz: "Não queria mesmo, minha filha. Aí fora está cheio de mulheres doidas por mim."

- Ei, gostei disso! "Minha filha, eu não queria você"... Legal, já pensou em ser escritor?

- Tá, tá, vai logo antes que a coragem acabe!

- Certo, só mais um gole. Não tomei nem meia garrafa!

A porta destrancada leva à vila, moradia de pessoas simples, mas com um ar um tanto paternal.

Maomé se aproxima da porta de Clara, quando esta se abre e de lá sai um homem corpulento, olhando para dentro e se despedindo com "querida".

A faca salta para a mão de Maomé, que em fúria lhe dá um destino certo.

Tudo acontece muito rápido. Os olhos que Maomé vê dentro da sala, no espelho, por um instante trazem o mesmo olhar de fúria que um dia o fez fugir. O que mais lhe assusta é que os olhos eram seus mesmos.

Um grito de horror da Clara traz Maomé de volta à realidade e ele tira devagar a faca do abdomen daquele homem de rosto tão familiar.

"Eu conheço essa faca, moleque" são as últimas palavras daquele homem à porta de Clara, que entre soluços e lágrimas incontroláveis, trêmula lhe diz: "Você matou meu pai".

-- Cárlisson Galdino 


John Real

Era uma manhã de domingo. Não uma manhã de domingo como as manhãs de domingo da maioria das histórias. Não era uma manhã de domingo ensolarada, nem uma manhã de domingo pacata. Por outro lado, não era uma manhã de domingo estranha, como aquelas que já denunciam que algo anormal está prestes a acontecer. Era simplesmente uma manhã de domingo.

Seu nome era John quando ele caminhava entre os rochedos próximos à sua casa, de onde podia ver o mar.

As ondas teimavam em quebrar à muralha de pedras, liberando aquele cheiro de mar e umidade, por mais que as pedras se impusessem firmes.

Havia alguma coisa estranha nesses rochedos pouco antes. Eram meio... vivos! Ou se tornariam vivos, talvez quem sabe até não tenha passado de um simples sonho. John se senta para ver melhor o mar.

Não que John fosse tão magro e balançasse ao vento a ponto de não conseguir ver direito ao longe, mas porque "ver melhor" às vezes toma tempo, e cansa.

Lá está a linha do horizonte, diferente do que ele lembrava. Bem, estava na forma de linha mesmo, que é a forma que John acredita que ela deveria ter, e não fazendo aquela curva como se fosse uma montanha. É, talvez o que vira antes tenha sido mesmo um sonho...

O céu está ali com seu azul e seu punhado de nuvens espalhadas. Ainda bem, devo dizer! Na lembrança de John aparentemente não havia nuvens espalhadas. Nem mesmo um céu onde as nuvens pudessem se espalhar.

Ao olhar ao longe, os olhos de John notam uma caravela próxima dos rochedos, com duas velas ou seria a vista turva. Volta-se diretamente para a caravela e esta some. Olha ao longe, a caravela aparece. Olha para ela, ela some.

Agora já não dá mais pra dizer nada. Qual o conforto do horizonte e do céu se na lembrança de John havia essa caravela "não encarável".

John então se levanta frustrado com os rochedos, o céu, o horizonte e a não-encaravela. Dá as costas para o mar, cujo horizonte se curva à sua saída. E deixa esses rochedos, que suspiram aliviados como se lhes tivesse sido tirado um peso das costas.

E John volta para sua casinha de madeira, fechando a porta para que o céu possa, sei lá, dar uma volta. E John pensa que talvez esta seja uma boa hora para mais um chá...

-- Cárlisson Galdino


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