Escarlate #30 - Café da Manhã

Escarlate #30 - Café da Manhã

A cozinha é pequena, mas tem um fogão a lenha e uma mesa com três cadeiras. Dois armários e uma fruteira. No fogo, duas panelas inundam a casa com um cheiro típico de café da manhã. Numa, raízes de macaxeira sendo cozinhadas e na outra um chá preto sendo preparado. Willen sai da cozinha com um galho seco, de onde tirara as folhas para o chá. Sai diretamente para o quintal, onde avista Zand dormindo, de barriga para cima, com a cabeça e os ombros apoiados em sua montaria, que já acordou mas em respeito ao dono continua como estava, descansando.

Começa a jogar uns pedaços de galho em Zand, que logo desperta e olha para o mestre.

- Vamos! Já amanheceu! Vai cuidar da vida que daqui a pouco o desjejum  está pronto.


 

- Estava com saudades dessa comida simples.

- É, geralmente é a Tila que faz  comida, e prepara muito melhor que eu, mas de vez em quando sou eu que tenho que cuidar de tudo.

- É, é bom a gente ter que fazer as coisas sozinhos às vezes, não?

- Desconfio que sempre, no seu caso.

De repente, Willen começa a rir sozinho, enquanto coloca chá preto em sua xícara.

- Que foi?

- A Tila vai ficar decepcionada.

- Como assim?

- Quando eu disser que tivemos uma visita e que ela preferiu dormir no cavalo a dormir na cama dela. Hahaha!

Zand sorri também, fazendo sinal de negação com a cabeça.

- Mas não foi bem assim! A cama dela é confortável! É que não conseguia dormir.

- É, eu sei... Seria bem mais confortável se ela estivesse lá também, não é?

- Que tipo de pai é você, hein? Geralmente os pais protegem as filhas! - Zand responde, divertindo-se com a conversa - Você desde que cheguei que quer me empurrar sua filha. Se ela estivesse aqui é bem capaz de eu já ter dormido com ela de tanto que você ia insistir.

- Zand, sério agora. Você veio em busca de um conselho e um conselho eu te dou: esqueça esse monstro. Dragões são monstros e ela não quer nada com você.

Num flash, Zand recorda o sorriso de Knova. Um sorriso discreto, mas não tímido. Um sorriso de quem pouco sorri e talvez, por isso mesmo, tão precioso.

- Dragões não se dão bem nem entre si! Que dirá com outros de outras espécies! É a natureza, afinal, dragões foram feitos para trazerem o terror e aventureiros foram feitos para caçar dragões. Esse é o caminho normal das coisas.

Zand desiste de responder. Diria que Knova não é assim, que a conheceu o suficiente para saber que no fundo ela é uma boa pessoa, apesar do orgulho incalculável. Nem tanta ganância assim ela tinha: só queria viver em paz com seu tesouro.

- Você sabe como dragões surgiram, não sabe? - Willen pergunta. - Claro que sabe! Você é um bardo! Então sabe muito bem que dragões vêm de uma espécie de um rei que foi amaldiçoado por sua ganância há milhões de anos. São monstros, nada mais.

- Com todo respeito, mestre, mas esta é apenas uma versão. Uma de milhares de versões que contam essa história.

- E há tantas assim? Em quantas dragões são criaturas do bem?

- Em algumas. Há uma versão que os dragões evoluíram de lagartos. Em outra, dragões são criaturas do deus Drako e foram criados para dominar. Há uma ainda em que dragões são descendentes diretos de certos deuses, sendo meio deuses também.

- Tudo bem, não discuto mais. Mas ainda acho que você deveria esquecê-la. E quem sabe até matá-la.

- Agradeço o conselho, mas matá-la está fora de cogitação.

- De qualquer forma, é você quem sabe...

Os dois continuam comendo por um tempo, sem pronunciarem qualquer palavra. Até que Willen volta a falar.

- Entendo o que você sente, filho. Não por experiência própria, mas como sabe já tenho alguma idade e ela não foi em vão. Entendo sim. E digo mais, pra ser sincero, no seu lugar eu não saberia o que fazer, porque ao que parece o coração escolhe caminhos sem sentido. Mas a razão diz que esqueça ela, e fique para conhecer a Tila! Ela volta semana que vem!

Zand sorri como resposta à simpática insistência.

- E essa outra? Por que não se resolve com ela então? Você falou pouco a seu respeito. Só lhe digo uma coisa: quem consegue vencer um dragão, seja na conversa, roubando ou matando, está muito longe de ser uma pessoa qualquer. É alguém especial. E vocês dois têm isso em comum: vocês dois ficaram diante de um dragão e sobreviveram para contar a história. Isso tanto pode ser perigoso como interessante.

- Já tomei minha decisão.

- Já? E qual é?

- Vou atrás de Rubi. Vou tentar endireitar minha vida e esquecer de vez aquele dragão.

- Assim é que se fala, filho!


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