Parte 1
Dia: sexta-feira, 13 de Fevereiro. Hora: zero e cinqüenta minutos. Lugar: cemitério em algum ponto de Sergipe. Está tudo escuro e deserto. Hora e lugar perfeitos para algo muito fora do comum acontecer...
"O quê? Onde estou? Está tudo tão escuro... Acho que aqui é para cima... - cavando com as mãos - Encontrei a superfície. Agora, é preciso apenas um pouco de esforço e... estou fora... Que lugar é esss... Não, não pode ser. Minhas mãos... esqueleto! Ossos! Minhas roupas cheias de buracos... Isso não é possível. Eu estou... morto?"
O pânico percorre todos os seus ossos, - afinal, é só o que tem agora.
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Uma hora depois, superado o susto...
"Bom, agora eu sou uma espécie de... zumbi! Um morto-vivo. O que faço então? Normalmente mortos-vivos não têm livre arbítrio, não é verdade? Por que será que sou um morto-vivo e conservo a inteligência? Que droga! Eu era tão legal naquele corpo meu de sempre... Bem, mas não adianta muito ficar me lamentando, não é verdade? Certamente há vantagens em ser um morto-vivo. Vou tentar descobrí-las. Hora de um pequeno furto. - olha em sua volta - Ali! Aquela mansão está ótima pra começar."
Vai até o muro da mansão. Pula-o com facilidade e segue em direção ao quintal. Passa pela piscina, olhando com curiosidade e se dirige à garagem.
"Exatamente o que suspeitei: o morador daqui é mago. Olha só essa carruagem enorme... Não parece haver estábulos ou cavalos por aqui... - chega à cozinha. - Quantos móveis e instrumentos estranhos. Vou tentar abrir uma dessas gavetas... Olha só! Talheres... São falsos, droga! São leves demais... Vou procurar algo melhor... E esses cristais... Se não estou enganado, vi um desses no castelo de um rei descuidado, que guardava ouro em um baú destrancado embaixo da cama. Espere! E minhas roupas? Aqui deve ter alguma coisa que eu possa usar. Mas... e essa fechadura? Nunca vi uma assim em toda a minha vida! Acho melhor tentar as janelas."
Ao se virar, seguindo à saída da garagem...
"Que maravilha! Uma caixa de ferramentas! Vamos ver o que tem dentro. - abre e encontra ferramentas que conhecia e outras que lhe são completamente novas. Fecha a caixa, que tem forma, trancas e divisórias diferentes, mas que ele não duvida de sua eficiência. Sai da garagem e fica à frente de uma janela de madeira. Após cerca de vinte minutos consegue êxito e entra na casa. - Esse mago talvez não seja exatamente um mago. Vejo apenas alguns artefatos, mas ele não parece se preocupar com a defesa de sua moradia: até agora não encontrei nada. Geralmente sou recebido com gólens, armadilhas mágicas, e outras surpresas. Deve ser só um colecionador. Mas se for mesmo mago, ou é muito descuidado ou terrivelmente perigoso."
Subitamente, ouve um grito de trás dele.
- Parado, seja quem for! - fala um vulto, segurando algo. Está escuro, e nenhuma outra característica se faz clara.
Cobra (assim era chamado em vida) sente uma enorme necessidade de fugir. Quando está prestes a fazê-lo lembra-se de que agora não é mais humano, mas também lembra que armas mágicas e magias ferem mortos-vivos tanto quanto a humanos, algumas até mais. Se ele for realmente um mago, ou mesmo um colecionador, o que ele carrega pode também ser mágico. E isso sem falar nas magias que normalmente os magos usam: devastadoras. Sendo assim, Cobra decide que definitivamente não pode mais ficar ali. Mas para ele a roupa não importa tanto. Já que ele deixou o que roubou fora da casa, não perderá tanta coisa. Cobra corre para a janela, mas quando está prestes a pulá-la, o mago grita:
- Pare aí, ladrãozinho covarde!
- Covarde? - Cobra indaga, virando-se. Há muito não se dirigiam a ele com essa palavra... Muitos já morreram após alguém chamá-lo de covarde no passado. Inclusive, no final, ele próprio.
A luz da Lua e de uma lâmpada externa iluminam seu rosto. Cobra ouve o objeto que o mago segurava cair e vê agora um vulto trêmulo. "Com certeza não é um mago. Talvez um colecionador barato, ou nem isso." Mas isso não lhe importa agora. Aquele homem falou o que jamais deveria ter falado. No local onde deveriam ficar os olhos, há duas pequenas chamas vermelhas expondo a sua fúria. O dono da casa tão nervoso está que suas mãos trêmulas derrubam, constantemente, vasos, imagens e outros enfeites, que vão ao chão e se estraçalham em mil pedaços. Mas a ira de Cobra não se abala com isso, ao contrário, aumenta. De repente, Cobra sente uma misteriosa energia percorrer seu corpo, passando pelos braços, que faíscam. Mas essa energia não causa qualquer dor, dá apenas uma sensação de poder. Sente, então, que deve apontar o braço para algo: o falso mago, claro! Sai uma serpente de energia, que se enrola no dono da casa, formando uma espécie de casulo. O homem some como se nunca houvesse existido. Há agora apenas um lugar vazio onde ele estava.
- Quem é o covarde "agora"? - Cobra pergunta. Também não sabe muito o que aconteceu, mas aconteceu.
Cobra esquece completamente o problema com suas roupas. Pula a janela, apanha o roubo e foge. Pulado o muro, surge uma pergunta em sua mente: "Para onde ir?" Depois de pensar um pouco no assunto, ele decide que o ideal é, ao menos por enquanto, voltar para o lugar de onde veio: o cemitério. Cobra nunca teve medo de coisas e lugares assim, sempre foi extremamente confiante e orgulhoso por ter se acostumado com esses ambientes.
"Interessante. Mesmo sabendo que mortos-vivos não dormem, sinto-me cansado. Talvez o que fiz com o colecionador de artefatos tenha me tirado as energias. Terei que dormir para recompô-las. ...por mais absurda que me pareça a idéia." Deita-se e adormece, então.
Porém, acorda ainda de noite. O cansaço passou. Olha em volta. Não há nada diferente. O céu está bem escuro. Sinal de que não tardará a vinda do astro dourado. E não demorou. Após alguns minutos de espera impaciente, Cobra contempla o nascer do Sol.
"Hora de investigar melhor a torre e o alcance do que fiz." Mas, ao tocar a caixa de ferramentas, Cobra sente sua mão queimar e de repente está tudo escuro.
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Cobra começa a ficar consciente. Ouve uma voz distante. Parece chamar o seu nome. Há uma neblina baixa e fraca. Parece não haver paredes, apenas uma sombra sólida em seu lugar. A luz é fraca e não vem de nenhum lugar logicamente aceitável. Cobra segue em direção à voz que o chama. De repente se vê diante de um ser estranho. Parece um homem com cerca de trinta anos, barba, cabelos escuros e curtos e, o que é mais estranho, com seis braços e duas pernas, lembrando uma aranha.
- Kin-Rá - Cobra deixa escapar o nome de seu deus, enquanto se ajoelha diante da estranha figura.
- Cobra. Sabes o que me agrada? Minhas regras? O que salva os meus seguidores? - pergunta Kin-Rá, com um olhar grave.
- Sim, senhor. Jamais ser injusto, cometer desonestidades, roubos ou faltar com a palavra e, sempre que puder, combater os que o fazem. - Responde Cobra, entristecido, pois sabia exatamente onde seu deus queria chegar.
- Então, se sabias o que queria que fosse feito, por que não o fizeste?
- Senhor... - Cobra não consegue completar a frase...
- Você merece o castigo da eternidade sem corpo: a vida sem vida em um imenso vazio... Mas a cada cinco mil anos eu escolho um seguidor destinado ao castigo eterno para lhe dar uma segunda chance.
- Sinto-me grato e honrado, senhor! - fala Cobra.
- Em sua vida, não fizeste nada além de contrariar minhas vontades. - continua Kin-Rá. - Como Cobra você espalhou dor e tristeza. Nessa segunda vida você deve espalhar alegria e esperança. O que você fizer de mal à noite o machucará ao dia. Se seguires meus desejos, após anular suas más ações, finalmente poderá mudar, você tem poder para isso. E, a partir deste momento, você passará a se chamar Marfim. Marfim Cobra. Como Cobra fizeste o mal. Como Marfim Cobra deverás fazer o bem. Mude logo, enquanto ainda há tempo, ou sofrerá as conseqüências do castigo eterno...
As palavras ecoam na mente de Cobra - não, agora Marfim Cobra -, quando ele acorda. Por um instante tentou afastá-las da mente, mas quanto mais tentava, mais elas o perseguiam. Pensou então que talvez fossem as coisas que ele havia roubado à noite. Talvez por causa delas não se sentisse em paz consigo. Pegou a caixa de ferramentas, desta vez pensando em pô-la onde encontrou, ela não mais lhe queimou a mão e as palavras que o atormentam se tornaram menos dolorosas.
Seus ideais no início foram belos, mas por fraqueza ele não pôde seguí-los. Foi assim que se tornou um ladrão devoto do deus da Justiça, o que nunca havia ficado claro pra ninguém, nem pra ele mesmo.
Marfim Cobra pula o muro com a mesma facilidade de antes, vai até a garagem e deixa as coisas exatamente onde as encontrou. Ao voltar o rosto para o muro vê dois homens descendo o mesmo com cordas: ladrões? Assassinos? Sequestradores? Não importa. Marfim resolve se esconder atrás da "carruagem" (o automóvel) e esperar que eles se aproximem. Um terceiro pula o muro e se abaixa, fazendo um sinal para os outros dois, que vão à garagem tentar arrombar a porta. Marfim Cobra, como fôra um ladrão, conhece algumas técnicas. Resolve usar uma delas. Desliza silenciosamente até os dois que estão à porta. Ao ver Marfim se aproximar, o terceiro do grupo grita: "Cuidado!" Mas, antes que os dois ladrões à porta entendam o que está acontecendo, Marfim Cobra salta golpeando os dois no estômago. Os dois caem, inconscientes. Marfim corre velozmente em direção ao terceiro, que já estava em cima do muro. Mas o terceiro não consegue fugir. Marfim Cobra conseguia pular esse muro, sem auxílio de nada, com extrema facilidade. Estando as cordas lá, não levou mais que uma pequena fração de segundo e, quando o terceiro ladrão estava tocando o chão, Marfim já caía sobre ele...
Havia um carro em frente ao muro, sem dúvida era o líder da operação. No momento em que Marfim despencava do muro sobre o terceiro ladrão, o carro acelerou.
"Uma carruagem sem cavalos? Magnífico! Não os alcançarei a tempo... Espere! E se eu conseguir lançar aquela magia sem palavras ou gestos?" - Ele tenta se concentrar, mas não adianta. Quando o carro já está longe, ele finalmente sente toda aquela energia percorrendo seu corpo. Ele então aponta o braço para o carro e... Tcharam! O carro sumiu.
"É! Isso compensa o fato de eu não poder mais roubar. Talvez, quando Kin-Rá falou em poder, estivesse se referindo a isso..." Pensa Marfim. As palavras que o torturavam sumiram. Ao sumirem, Marfim ouve: "Continua agindo assim, e em breve serás libertado. Eu me comunicarei contigo. E saberás quando eu estiver falando!"
Marfim Cobra atravessa a rua e segue em direção ao cemitério. Espera alguma mensagem prometida por Kin-Rá, mas nada recebe. Quando está prestes a ir embora, uma cobra rasteja sobre seus pés, olha-o, bota a língua para fora e sai rastejando.
"Será isso um sinal? Acho que devo seguí-la." Marfim Cobra a segue. Ela rasteja até um túmulo recente e entra. "Será que devo abrí-lo?" Pensa, mas depois de prestar mais atenção vê a chapa do túmulo. Tem o nome de alguém e alguns números: 1967-1992. "Hã? Como assim? O que é isso?" Pensou depois que poderia haver qualquer coisa importante dentro do túmulo. Quando já tinha as mãos levantadas para destruí-lo, a cobra fugiu rapidamente, sendo perdida de vista. "É, certamente não devo quebrá-lo!" E fica a pensar na frase que dissera. De repente, ouve uma voz.
- És tu o dito Marfim Cobra?
- Sim, sou eu! - Responde, virando-se e imaginando quem poderia o estar procurando. Mas, ao contrário de todas as possibilidades que conseguiu criar, quem o chamou parecia um sacerdote.
- Não se assuste! Eu sou um dos pouquíssimos sacerdotes de Kin-Rá que existem hoje em dia. Kin-Rá me disse que você precisaria de um lugar pra ficar. Eu tenho uma casinha onde você poderia ficar durante o dia. O que acha? - sugere o sacerdote de Kin-Rá.
- Se esta é a vontade de Kin-Rá, aceito.
- Eu trouxe roupas para que cubra todo o corpo. - Enquanto revista a mochila.
Depois que Marfim recebe e veste a roupa, os dois saem até uma cidade próxima. No caminho, o clérigo começa a explicar algumas novidades, como o automóvel... Na pequena cidade não há muito movimento de carros, mas para Marfim é o bastante. Finalmente eles chegam à casa do clérigo. É uma casa humilde, possui poucos cômodos. Durante o resto do dia, ele ensinou a Marfim Cobra muitas coisas sobre o mundo e sobre aquela cidade. Seu cognome, conforme lhe disse, é Formiga Vermelha, pois se considera muito inferior a seu deus, tendo assim uma maneira de demonstrar como se sente pequeno em sua presença. Ao chegar a noite...
- Já vai embora? - pergunta, ao ver Marfim vestindo o resto de suas roupas. - Espere! Tenho algo a lhe mostrar.
Formiga vai ao quintal, demora um pouco. Volta, falando.
- Eu nunca tinha conseguido entender o que cobras tinham a ver. - Marfim começa a estranhar a conversa. - Mas agora entendi. Kin-Rá fez isso para você. - Fala, estendendo a mão, e nela um punhal com uma figura de cobra no cabo. Marfim o pega e analisa detalhadamente. - "Apenas os nascidos entre serpentes poderão usar o 'Punhal das Serpentes', que convocará para serví-lo, duas serpentes lutadoras. Se és o destinado a recebê-lo, gritarás: 'Inchinmy Ejoda' e as serpentes o servirão." Boa sorte!
- Obrigado. - responde Marfim. "Acho que é hora de entrar em ação!"
Marfim Cobra sai da pequena casa do Formiga. A rua está deserta. Marfim vai às ruas mais desertas: nada de errado acontece! Ele anda por horas sem nada encontrar. Enquanto caminha começa a pensar em sua vida. Por que seguiu um caminho tão tortuoso? Era a vida fácil, claro. Tinha consciência de que não devia agir daquela forma e ainda assim agia. Mas não pode ter sido só isso. Marfim sempre fôra forte de vontade em muitas outras situações. Por que haveria de fraquejar justo naquela?
Um caminhão passa na pista ao lado da cidade, com dois carros próximos a ele. Quando passa (parece estar cheio de mercadorias), os carros aceleram atrás. Um indivíduo no banco dos passageiros de um dos carros aponta um revólver para o motorista do caminhão, que freia.
Pensamentos depois, há um assalto. Os carros param. Marfim corre em direção à cena. O homem armado desce do carro - os outros também - e aponta o revólver para o motorista. Marfim está a cinqüenta metros, aproximando-se. Os outros assaltantes vão até o carregamento e o descobrem. Marfim está a quarenta metros, quando o assaltante que segura a arma está prestes a matar o motorista. Marfim Cobra se concentra e em pouco tempo consegue invocar o seu poder - está aprendendo a controlá-lo -, aponta o braço e a serpente de energia acerta o que mataria o condutor do estranho veículo (estranho para Marfim, claro), criando um magnífico casulo brilhante de energia, que após alguns segundos desaparece junto com o assaltante que estava dentro.
O que parece ser o chefe do grupo grita, desesperado: "atirem! Matem o desgraçado!" Os outros, sem perceber o perigo que é Marfim, atiram. Marfim continua avançando, mesmo quando eles acertam, pois as balas não o machucam. Finalmente, o esqueleto os alcança e os derruba facilmente. Outros vêm, enquanto o chefe do grupo corre em direção a um dos carros. Marfim, percebendo que precisa de ajuda, resolve usar sua nova arma e grita: "Inchinmy Ejoda!", segurando firmemente o punhal, com o gume voltado para baixo. Imediatamente após isso partem dois raios verdes do punhal: um à esquerda de Marfim, e outro à direita. Cada raio cria uma serpente verde, com flamas nos olhos. Os assaltantes, percebendo que aquilo é sobrenatural, soltam as armas e correm. Marfim aponta o braço esquerdo para o chefe, e o direito para os assaltantes que estão tentando fugir. As serpentes partem, quase que no mesmo segundo, nas direções indicadas.
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O clérigo de Kin-Rá, Formiga Vermelha, acorda. Abre os olhos: vê o teto de sempre; senta-se na cama: vê as paredes, seu criado-mudo e seu armário, já um pouco acabados. Troca de roupa e se levanta. Segue, então, para sua minúscula sala, pensando em como teria se saído Marfim Cobra nessa missão. Mas, ao chegar lá, leva um susto: depara-se com ele encostado na parede em frente.
- Como se saiu? Foi bem em sua primeira missão? - Pergunta.
- Estavam querendo saquear um carro de mercadorias...
- Um caminhão!
- É. Dei um jeito neles. Acho que foi bom para uma primeira vez... - Marfim Cobra.
- Bom! - O clérigo responde, indo à minúscula cozinha. Mas interrompe seus passos e se vira para Marfim. - Você come? Quero dizer: precisa consumir alguma coisa pra repor energias?
- Não no momento.
- Como assim? - O clérigo Formiga.
- Vou te dizer uma coisa. Quando eu voltei à vida e usei meus novos poderes, tive sono e precisei dormir, não sei por quanto tempo... Até o amanhecer. Agora o uso e não preciso mais dormir. Achei estranho e talvez você também o ache, mas aconteceu. Por isso, não estranhe se eu precisar me alimentar, de uma hora para outra.
- Só uma coisa. Dá pra usar o capuz? Sabe como é... Seu aspecto não é um tanto... Deixa pra lá, vai...
Formiga Vermelha fica parado, perdido em pensamentos. Depois de poucos minutos vai à cozinha tomar seu café da manhã.
Ao voltar, pergunta:
- E hoje, o que gostaria de fazer?
- Que tal me ensinar a decifrar esses símbolos gráficos? - Aponta para um jornal sobre a mesa.
Tudo corre bem durante esse segundo dia. As orações de Formiga, aprendizado de Marfim. O dia passa calmo e à noite...
- Já vai? - Pergunta Formiga.
- Já. - Marfim responde.
- Sei que você não precisa, mas... Boa sorte!
- Obrigado.
Marfim Cobra parte para as ruas: vai agir, vai lutar pela justiça, enfrentar os perigos do mundo.
A noite passa e Marfim se desloca pelas ruas da cidade. Constantemente. Nada acontece.
"Essa tranqüilidade não está me agradando. Será que nessa noite nada ocorrerá?" Pensa Marfim Cobra. "O jeito é continuar vigiando a cidade..."
E continuou a vigiá-la, porém nada de estranho ocorreu. Parecia que todos realmente haviam evitado sair. Parecia que todos estavam amedrontados por alguma eventual notícia sobre o ocorrido. E assim a noite passou - nessa monotonia: sem ação, sem emoção, sem mais pontos positivos por Kin-Rá. Enfim, amanheceu.
- E aí? Como foi?
- Nada foi.
- Não houve nada?
- Nada.
- Não se preocupe com isso. Olha! Dizem que um dia é da caça e o outro do caçador. Quem sabe hoje à noite...
- Não tenho outra escolha a não ser aguardar.
- E olha o que saiu no jornal!
Marfim se inclina sobre a mesa e vê naquelas páginas a foto do caminhão e dos corpos, tirada à distância.
- E o que diz? - pergunta Marfim.
- Que um sumiu e dois foram mortos de maneira estranha. Não sabem o que aconteceu. O caminhoneiro diz que foi um... "esqueleto". Muito bom, hein? Mas tão achando que é o chupa-cabras.
- É o quê?
- Um bicho que ataca animais por aí... ...mas não deve existir não. - Formiga pára e começa a olhar Marfim Cobra preocupado. - Bom, se você existe...
Mais um dia se passa. Mais informações Marfim guarda. E mais uma vez sai às ruas. Sai na expectativa de uma noite melhor.
Durante o dia, o morto-vivo aprendeu também um pouco sobre os tipos de crime que se pratica hoje, apenas para constatar que as coisas não mudaram muito...
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Hora: uma e quarenta e três. Em uma das ruas mais desertas da cidade algumas pessoas se encontram reunidas. Um grupo de cinco ou seis. Marfim Cobra passa atento por uma rua a esta perpendicular, e percebe que algo estranho está acontecendo. "O que um grupo de pessoas estaria fazendo de madrugada, de pé em uma calçada de uma rua deserta?" Sim. Com certeza há algo estranho aqui. Marfim se esconde ao lado de uma casa, na esquina, e tenta observar atentamente o que está acontecendo. As pessoas estão formando um círculo fechado. Não dá pra ver muita coisa, mas elas parecem ter espingardas e revólveres. Algo muito suspeito. Marfim se aproxima, aos poucos, quando de repente um deles o vê.
- Pessoal! Olha "ele" ali!
- Chumbo nele! - grita outro, enquanto todos pegam rapidamente suas armas. Certamente não gostaram do que um "homem encapuzado" fez há duas noites.
Eles abrem fogo. São seis. Um traz uma metralhadora, enquanto os outros trazem armas mais comuns. Marfim recebe alguns tiros, mas não se machuca. "Se eles querem encrenca, eles terão." Pensa Marfim, enquanto posiciona o punhal para ter ajuda das serpentes de energia.
- Ele usa colete à prova de balas! - grita um dos seis, mostrando a conclusão a que chegou para a pergunta: "Por que as balas não o ferem?" Ele larga a arma, tira um punhal que trazia consigo e dispara em direção a Marfim Cobra. Pena que, para ele, imunidade a balas só exista em filme ou desenho animado...
Outros o seguem. Só fica para trás o homem que usava a metralhadora, resmungando, pois não poderá mais usá-la com seus aliados na frente. Marfim grita: "Inchinmy Ejoda!", segurando o punhal com a lâmina para baixo. A lâmina adquire um brilho verde e lança dois raios do mesmo verde para os lados de Marfim. Esses raios criam, cada um, uma serpente de energia que, ao sinal de Marfim, ataca. A da direita ataca o que está mais próximo, enquanto a da esquerda voa como uma flecha disforme em direção ao que ficou para trás. Os dois caem. Enquanto outros param, sem ação, os dois restantes correm contra Marfim. Este se concentra e consegue atingir um deles com sua serpente energética, que sai de seu braço direito, mas o outro chega perto o bastante para realizar ataques. Marfim não é atingido, mas os movimentos bruscos fazem com que os panos que o escondiam caiam, mostrando sua cabeça esquelética. O atacante fica tão assustado que, depois de levar um soco violento no estômago, mesmo com seu corpo capaz de se erguer - dolorosamente, embora -, permanece no chão com os olhos arregalados e uma expressão de terror na face.
Os outros dois que restam estavam prontos para agir, mas essa visão lhes deu mais algum tempo de inatividade, até que um dos dois, antes que fosse tarde demais, diz ao outro o que acha que pode ser a única salvação.
- Pra igreja!
Os dois correm. ...e Marfim vai atrás. Faltando cerca de três metros para o primeiro deles alcançar a igreja, Marfim derruba o segundo, que havia ficado muito para trás.
- Padre! Abra! - Grita o último deles, à porta da igreja, batendo desesperadamente. E não demora para que a porta abra.
- Padre! Me ajuda! - Diz ele, nervosíssimo, enquanto entra e fecha a porta. - Tem um esqueleto atrás de mim. O senhor tem que me ajudar.
- Calma, filho. Não tem ninguém atrás de vo... - O padre é interrompido por uma forte pancada na porta.
- Pegue a água benta! Está ali. - O padre não mais discute. Ele aponta para algum lugar na direção do altar. Sabe que esta é a hora de mostrar a que veio ao mundo. É a hora de fazer diferença.
O barulho de pancadas na porta continua. O último pistoleiro corre na direção que lhe foi anteriormente indicada pelo padre. As pancadas continuam e a porta, que esteve firme e impecavelmente sólida por anos, parece prestes a desabar. O homem começa a correr de volta com um pequeno frasco nas mãos. Os barulhos parecem parar por alguns segundos. O homem chega e entrega o frasco ao padre. O homem da fé abre tal frasco. Neste momento, no ar soa um alto estrondo, e a porta é arrombada por uma figura esquelética com os punhos fechados e unidos, caindo em arco. A tampa do frasco cai no chão e o padre joga um pouco do conteúdo do dito, e muito bendito, frasco no esqueleto.
"Meus ossos doem. O que esse miserável jogou em mim? Estou fraco! Não consigo força para nada..." Marfim se sente fraco. Fraco como jamais esteve. E ele se ajoelha no chão, pois suas pernas não conseguem mais sustentar o seu peso. O padre, então, com a frieza de um carrasco, rezando para os céus, ergue o frasco pensando em jogar mais água benta "neste demônio" que está diante dele, mas logo uma idéia melhor lhe surge: por que jogar de poucas poções? Então ele segura o frasco com força, com o braço direito, preparado para arremessá-lo. "Claro! O frasco é de vidro! Se um pouco de água benta fez com que ele caísse enfraquecido, todo o frasco jogado de uma só vez decerto o matará." Ele recua um pouco mais a mão, pronta para jogar o frasco, quando um pequeno cilindro com ponta arredondada rompe a velocidade do som, causando um enorme estrondo.
Uma figura na calçada chama a atenção. Está segurando uma arma de fogo com as duas mãos. O padre cai para trás e o frasco se quebra. É Formiga Vermelha o atirador. Marfim, caído no chão e enfraquecido, mal consegue vê-lo. "O último pistoleiro" saca a sua arma e atira: acerta o ombro esquerdo de Formiga. Quase que ao mesmo tempo, ele revida com um tiro certeiro em seu coração. A outrora ameaça cai inerte. Marfim, já no chão, mal pode falar ou ver, muito menos se mover. Formiga Vermelha o toma: põe o braço dele em torno de seu pescoço e, com muito esforço devido ao ferimento no ombro, o arrasta atravessando a porta da igreja. ...ou o que sobrou dela. Formiga Vermelha sabe que essa cidade, como muitas outras, teme as balas, teme o desconhecido. Demorará alguns minutos até que a curiosidade das pessoas vença seus medos, e saiam à rua para saber o que aconteceu. Isso possibilitará o retorno de Marfim e Formiga. Formiga sabe disso, e toma proveito. Chega em casa cansado e sem forças, sangrando, fecha bem a porta, larga Marfim em um lado da pequena sala e cai no outro lado, abraçando o chão como se quisesse poder tocá-lo um pouco mais. Talvez alguns anos...
"Já é dia? Não me lembro bem, o que aconteceu? Um grupo de atira... Oh, não! Formiga Vermelha!" Marfim se levanta e, sem que precise procurar muito, encontra seu amigo em uma poça de sangue, caído próximo à porta. "Não! Ele não pode estar morto!" Ele ergue seu braço e larga. O braço do clérigo cai como o de um boneco. Marfim cai de joelhos ao lado do corajoso sacerdote. Ele choraria. Se tivesse olhos de matéria. Há batidas na porta, mas é como se não ouvisse.
- Abra a porta. Somos da polícia. - grita alguém, do lado de fora da casa, com tom de voz autoritário.
Marfim parece não ouvir. As batidas se repetem, agora ligeiramente mais fortes.
Um forte pontapé e a porta se abre. Os tiras vêem a cena, mas não conseguem acreditar. Um esqueleto ajoelhado próximo a um cadáver. Logo passa por suas cabeças que Marfim foi o assassino. - Decisão precipitada. Se eles olhassem com mais atenção veriam nele a dor da perda de seu único amigo na Terra de hoje. Começam a atirar em Marfim. Um deles, com ar de líder, manda um outro buscar reforços e comunicar o fato. E continuam atirando. Claro que, pela natureza mágica de nosso bizarro herói, as balas não o ferem, não o enfraquecem, mas o trazem de volta à Terra.
- Parado! Seja você o que for! - grita o líder dos policiais.
Marfim Cobra quer ficar sozinho e não suporta o incômodo fardado. Ele se levanta. Os tiras recuam um pouco. É agora! Marfim dispara uma serpente branca com seu braço direito. A serpente envolve em um casulo um dos policiais e, como sempre, desaparece, levando a vítima. Marfim, depois disso, corre em direção à porta, derrubando com os braços dois policiais que estavam no caminho. Eles, talvez por covardia, ficam no chão, imóveis.
Marfim segue sem rumo pela rua. A Lua ainda domina mas, depois de tantos e tantos tiros, a população não consegue conter a curiosidade em torno do que aconteceu. Os poucos que colocam seus rostos para fora de casa têm a infelicidade de ver Marfim Cobra andando no meio da rua. A visão é aterrorizante e, certamente, alguns se arrependerão para sempre de terem tido essa curiosidade.
Marfim Cobra está agora saindo da parte urbana dessa cidade. Não sabe aonde vai. Sabe apenas que vai e, por enquanto, isso é suficiente.
Logo chegará o amanhecer. Marfim sabe que logo veículos tomarão essa terra sob seus pés. Já se afastou muito da cidade e não pegou o caminho que passa pelo cemitério. No entanto, isso pouco importa para ele. E Marfim Cobra segue com suas vestes, mas não é coberto totalmente por elas. Ele não dá importância a isso. Segue andando. Somente ao ouvir o barulho de um motor ele, apressadamente, esconde-se por trás de suas roupas velhas. O caminhão passa e o desperta. Ele percebe que esse foi o primeiro de muitos outros que hoje passarão por aqui. Olha para os lados. Em um lado há bois dormindo. No outro há uma casa e um pouco de barulho se inicia. O Sol ainda não nasceu. As pessoas estão acordando. Só lhe resta seguir em frente para descobrir onde chegará.
Marfim segue andando pela estrada quando encontra uma rua sem calçamento à esquerda da principal que ele seguia. Como é menos movimentada, ele toma o novo caminho. Também não sabe aonde o levará mas, como já disse, isso não é importante para ele. E ele segue, mudando de ruas para fugir das pessoas. Estas, ao verem um vulto encapuzado, afastam-se desconfiadas. Elas constituem um problema, mas não maior que a presença de crianças que, sempre tão curiosas, não ficam como os adultos. Elas ou temem e choram ou se sentem atraídas. São o perigo principal. E ele seguiu. Algumas crianças ainda se aproximaram e viram duas chamas vermelhas na escuridão de seu capuz. Elas foram, apressadas, contar isso aos pais, que se benziam e negavam a afirmação das crianças, alegando ter sido obra de suas férteis imaginações. Marfim Cobra seguia sem destino certo, por ruas novas, vendo novas paisagens, novas casas e pessoas. Tudo que não o conhecia ou não lhe pertencia.
Primeiro volta à vida, depois perde seu único amigo e conhecido. O que mais deve esperar de seu destino? Segue em frente e vê um rio. Há pessoas ao longe, mas como não precisa respirar e o rio certamente é fundo, ele conseguiria passar sem ser visto. E ele o faz. Não com esse pensamento, apenas continua sua trajetória e passa sob o rio até o outro lado. E nada mais vê. Não que não possa, que tenha perdido essa capacidade. Marfim não vê porque não consegue dispersar sequer uma pequena fração de seus pensamentos.
"Kin-Rá! Por que me colocaste aqui? Por que não me deixaste viver em morte? E agora? Agora que se foi meu amigo, instrutor e conselheiro... Por que lhe disseste que eu corria perigo e o tiraste de sua cama para morrer? Detesto e sempre detestei perder companheiros. O que farei? Sigo por esses malditos caminhos sem imaginar onde chegarei. Aonde devo ir agora? Por favor, me diga. Disseste-me que responderia às minhas perguntas, que me diria o que fazer, para onde ir... Esta é a hora: o que faço, Kin-Rá?"
Marfim Cobra segue andando por ruas e mais ruas. Seu corpo anda, mas sua mente ficou muito atrás. Ele anda com passos sem vontade, enquanto espera a resposta de seu deus, que nada diz. Depois de uma longa espera, mal sabe quantos dias e noites, ele lembra que deuses muitas vezes se comunicam por sinais. Ele tenta retornar ao seu corpo e começa a ver um azul. Parou. Agora a imagem está mais clara: é fim de tarde e à sua frente está o oceano, como sempre, se mesclando ao céu. Isso não faz muito sentido para ele. Marfim começa a olhar ao redor quando vê, em seu lado esquerdo, ao longe, topos de alguns edifícios. "É esse meu destino." Pensa ele, enquanto se vira para a provável cidade e começa a caminhar. "Há muito o que ser feito." Ele conhece a quantidade, mas não a qualidade (o que deve ser feito). Isso é de pouca importância agora. O desafio do caos o aguarda e Marfim Cobra sabe que não pode fugir dele e que o que fez é muito pouco se comparado com o necessário. Mas ele acredita que vai conseguir e, se depender desse sentimento, Marfim, cedo ou tarde, terminará sua missão na Terra e então poderá ter a vida livre e feliz na teia abençoada.
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