Parte 1
Há duas semanas o monstro de pedra e gelo foi visto próximo à vila de Motron. Havia um rastro de sangue de origem indefinida, mas a cada semana ou conjunto de semanas ele atacava. Era sempre em uma quinta-feira, durante a noite, quando os animais se calavam e um canto de cristais tomava o lugar. Ninguém conseguia se movimentar ao ouvir aquele som. Diziam ser mágico. Só então ele aparecia. Seus olhos mostravam o vazio do espaço. Suas pedras brancas e cristais que deixavam suas costas eram a última imagem que suas vítimas viam.
Mas era fim de tarde de uma quinta-feira em Motron, não era nada agradável. A maior parte da população tentava manter a calma. A própria e a daqueles que se desesperavam a chorar, como fizeram há uma semana. Não havia o que pudessem fazer. Os que tinham cavalos já haviam partido. E a aldeia fica tão longe de tudo... A única coisa a seu alcance era sentar e esperar por um milagre. Apenas um...
- Ha!
- Opa, precisa melhorar, amigo!
- Ho!
- Por que insiste em usar de tanta graça? Já não lhe disse que não faz diferença no meio de um combate?
- Pois lhe disse que fazia, lembra-te? Isso é lutar com estilo, iá!
- Claro, mas não aceitei ainda aquela conversa de que isso nos diferencia dos... Ei!
- ...Animais. É, venci.
- Parabéns. Uff! Este treino me cansou. Ainda bem que usa espada de madeira nos treinos.
- É, meu amigo Cristian... Não preciso agradecer por usares um bastão de madeira, preciso?
- Certamente que não... Mas diga-me: como vai com a Keuda?
- Ah... Sinto que há algo entre nós sim. Algo acima de nós. Devemos nos unir em alguns meses: falta eu falar com Droole.
- É, espero que tudo corra bem entre os dois, mas esses casos do coração são tão complicados... Bom, Algio, que tal pararmos de papo furado e buscarmos por Lob e Geba. Como estarão os treinos deles?
- Vamos lá.
- Vamos. A propósito, já elogiei a sua agilidade?
- Sempre que o venço... você o faz.
- Pois torno a fazê-lo. Se unisse à agilidade estratégias mais sofisticadas de combate, seria um guerreiro infalível.
- "Estratégias mais sofisticadas"? Como as tuas?
- É! O que há de errado com minhas estratégias?
- Não, nada de errado. É que... Só acho que elas funcionam melhor com um bastão e eu não pretendo mudar de arma...
- Então é esta a idéia que tens dos jogos de estratégia? Vamos resolver isto agora. Que tal lutarmos de novo com armas trocadas: eu com a espada e você com o bastão?
- Tudo bem. Toma!
- Pega! Está pronto?
- Estou.
Em alguns golpes, surge um vencedor.
- Estratégia é algo a ser usado com qualquer arma. Ponto para mim.
- Ponto para a espada. Acho que "você" devia mudar de arma.
- Não brinca... Vamos encontrar os dois.
...
- Olha lá eles!
- Veja só! Isso são modos de lutar?
- Ora, Cristian! Quem falava agora há pouco que isso não fazia diferença?
- Silêncio! Estou vendo a briga!
Lob e Geba lutavam, alguns metros à frente, como selvagens. Lob com sua espada de duas mãos, de madeira. E Geba com um bastão substituindo a lança, que é sua especialidade.
- Sinto, Cristian, mas Lob até que mostra certo jeito. Seus golpes são selvagens, sim, mas com movimentos precisos. Geba, no entanto... E está usando a mesma arma que você. Não acha que devia ensinar-lhe sua estratégia?
- Eu bem tentei, mas ele não quer saber. Ontem mesmo, enquanto você lutava com Lob, tentei mostrar alguma coisa, mas sabe o que aconteceu?
- Ele recusou.
- E o pior é que me venceu no combate. Estes parecem não serem meus dias... Mas olha como eles lutam! Acho que perdi a batalha para Geba pelo tédio! Ninguém fala uma palavra!
- Realmente...
- Olhe só: temos um vencedor!
- É o Lob!
- Ponto para a graça: vocês venceram hoje. A propósito, Lob, não acha mais bonita uma luta com técnica que uma com "graça"?
- Não.
- Então não vai aceitar meu convite para aprender estratégia...
- Por que você sempre insiste em ensinar isso?
- Ah, Geba, você perdeu hoje...
- Perdi. Mas porque isso aqui é um treino. É preciso muito mais pra me derrubar.
- Algo errado, Lob? - Algio se aproxima dele.
- Não sei. Sinto apenas a presença de algo... Não muito bom.
- "Quando as pedras e o gelo
Se uniram no céu
Foi quando um pesadelo
Virou essa terra." Vocês acreditam mesmo nisso?
- Não é brincadeira, cantor barato.
- Ei, calma!
- Deixe-o, Cristian.
- Algio, Algio, Algio, você adora o meu nome, não?
- Ah... Você está passando dos limites hoje.
- Vê se cala a boca e vamos embora.
- Geba! O que há de errado com vocês?
- Vamos parar com isso por favor! - Lob intervém e se põe entre Geba e Cristian. - Certo, agora vamos.
Eles sempre vêm treinar aqui. Sempre, desde muito tempo atrás. Lob, com sua espada de duas mãos, sua selvageria e atenção; Algio, com sua espada, sua classe e agilidade; Geba, com sua lança, grosseria e vitalidade; e Cristian, com seu bastão, sua confiança e sua estratégia. Eles se conhecem há muito tempo. Tinham um mestre - o conceituado mestre Fuolha - , que os treinou, mas morreu há dois anos, deixando seus conhecimentos bélicos e uma filha, Keuda, que vive sob os cuidados da viúva Droole, na vila de Motron.
- Já faz oito anos...
- O quê?
- Que deixamos nossos lares e viemos treinar com o mestre Fuolha...
- É, o tempo passou tão rápido...
- Lembra quando chegamos?
- Não!
- Lob!?! - os três exclamam, em coro.
- Não pode ser!
Todos o seguem: ele repentinamente disparou em direção à vila, que os três nem vêem ainda. Já estão perto dela. Em seu centro um globo de gelo irradia o frio da morte. Os três chegam.
- Todos estão mortos! - Lob berra, com ira. - Aofri-ferreiro, Droole e Keuda...
- Keuda!?!
- ...o chefe Urupsy. Todos!
Algio se aproxima do globo e se ajoelha diante do mesmo. As lágrimas correm dos seus olhos.
- Não pode ser... Não é verdade!
- Calma... - Cristian deixa escapar esta palavra, esta súplica.
- Calma!?! Olha essa porcaria! - Algio empurra o globo, com meio metro de diâmetro, na direção de Cristian. - "Vocês acreditam nisso"...
- Eu... não tive culpa do que aconteceu... - Fala após se desviar do caminho do globo.
- Eu sei... Eu sei.
Eles se abaixam ao redor do vale que estava sob o gelo e fazem silêncio por algum tempo. Até que...
- Chega! Vou partir em busca do monstro. Quem vem comigo?
- Eu vou.
- Obrigado, Lob. E vocês?
- Vamos esperar...
- Esperar o quê!?!
- Calma! A gente não pode sair assim...
- Assim como, Geba?
- Olha - Cristian responde - , vamos ver exatamente o que aconteceu antes de tomarmos uma decisão desse tipo.
- Tudo bem...
Eles partem. A primeira casa que vêem é a do chefe Urupsy, chefe da vila. Há estalagmites, de gelo, manchados de sangue. Nem sinal do corpo.
- Viram? Ele tem o poder do gelo.
Foram à casa do ferreiro Aofri, onde encontraram seu corpo estilhaçado no chão, fino como um tapete, sem sangue ou músculos, só a pele e os ossos em pó.
- Ele tem a potência da pedra.
Foram à própria casa. Cada um dos quatro quartos estavam intactos, bem como as salas e a cozinha. Tudo na mais perfeita ordem, do mesmo jeito que eles haviam deixado.
- Ele escolhe suas vítimas.
Finalmente foram à casa de Droole e Keuda. Estava totalmente congelada, com estalactites, gmites e pontas em geral. Havia uma torre de gelo segurando uma cadeira a um metro do chão. Atrás da cadeira, a figura de um rosto em dor e os braços levantados revela que Droole tentara arremessar a cadeira contra o monstro. Não havia, entretanto, corpo de Droole. Só um buraco perfeito no gelo, e sem sangue. A mais de um e menos de dois metros de altura, não sei ao certo, havia um rosto, preso ao teto por muito gelo. Era um belo rosto expressando dor, mas não uma dor terrível como dizia o rosto de Droole. era uma dor esquisita, como se estivesse "prevendo" alguma coisa ruim. O rosto era o belo rosto da bela Keuda. ...também sem corpo.
- Keuda! Não!
- Conclusão: o monstro está fora do nosso alcance
- Eu não acredito. - Algio deixa a casa, indo em direção ao centro da vila. Os outros o seguem.
- Não podemos lutar contra alguém, ou algo, assim.
- Por que não!?!
- Ele vai nos matar: não temos chance.
- Ele vai nos matar cedo ou tarde. Temos que lutar agora.
- Não é sensato...
- Sensato!?! Ele está matando pessoas. Nunca vai saciar sua fome antes de morrer. A cada semana morrem mais pessoas. Não podemos suportar isso!
- Não tente nos enganar. Ou se enganar! Você quer encontrá-lo pra vingar sua Keuda. E a vingança não é um sentimento dos mais nobres...
- Cristian...
- Vocês não entendem...
Todos se viram e vêem Lob que, sem ser percebido, havia ido à casa deles e vinha agora com uma mochila nas costas. Ele completa.
- Temos que partir.
- Tudo bem. Façam vocês dois o que quiserem. Eu não deixarei Motron.
- Vocês realmente não entendem... Não existe mais Motron. Temos que partir para outra vila, ou para enfrentar o monstro. Vocês escolhem.
Cristian e Geba param a meditar, enquanto Algio vai pegar suas coisas. Pouco depois vão eles também fazer as malas. De modo que, em menos de dez minutos, os quatro estavam reunidos no centro do que era Motron até pouco tempo atrás.
- Decidiram? - Lob pergunta.
- Se é pra estar com estranho, prefiro ir com vocês.
- E você, Cristian?
- Tudo bem... Vocês venceram. Eu vou com vocês em busca do monstro para uma "morte solidária".
- Vamos, então. - Lob fala, deixando a floresta logo em seguida.
- Como sabe que é por aí? - Cristian pergunta.
- Algo me diz isso...
- Não acredito! Vamos em busca do monstro, mas como não sabemos onde está, vamos seguir pela floresta. Vamos nos perder! Que brilhante idéia... Ei! Esperem por mim!
Já é noite e eles param. A vários metros da vila. Pode parecer estranho sair à noite e armar acampamento pouco depois, mas eles talvez não suportassem passar a noite em Motron.
- Bom, quem caça hoje? - Cristian pergunta. - Algio? Lob?
- Não posso. - Algio responde.
- Eu vou. - Geba decide prontamente.
- Tudo bem. Cuidem do acampamento. - Lob fala e, voltando-se para Geba. - Vamos.
...A presa caminha calmamente por entre as árvores. A um salto repentino nota a presença do caçador. E corre. O caçador a persegue, desferindo golpes na paisagem. Com tantas mudanças de rota repentinas, a presa começa a se distanciar, cada vez mais. Até que uma lança a atinge em cheio e ela cai.
- Feito.
Geba e Lob voltam com o fruto da caça, com o componente principal de sua próxima refeição. Lá chegando, encontram o acampamento devidamente montado, com galhos, folhas e cipós, tão abundantes em quase todo o continente. Não era um dos melhores lugares para se passar a noite. Só tinha quatro camas improvisadas, como colchões de palha, com tantos galhos e cipós por cima. Não havia barraca: não esperavam que fosse chover e sua experiência com floresta permitia que levassem isso em conta quase como fato.
A fogueira queimava no centro do acampamento. Suas chamas entretinham os olhos do quarteto que, sentado em quadrado ao seu redor terminava o jantar. Havia sobrado alguma carne, pois se tratava inicialmente de um volume considerável, além de terem coletado, adicionalmente, algumas frutas.
O silêncio prossegue por longos minutos: parece que ninguém tem sono. Também, pudera! Depois do que aconteceu... O fogo atrai seus olhos. Há uma certa identificação deles para com as chamas que dançam sobre os galhos secos. Poder-se-ia dizer que se tratam de cinco chamas centradas em quadrado/X. Os olhos se irritam com o calor que aquece suas faces. Suas mentes estão muito longe agora. É como se houvessem sido tragadas pelo fogo.
Eles vêem as chamas ficarem azuis, e todas as árvores ao seu redor dão lugar ao topo de uma montanha. Há alguma coisa se movimentando no céu, sobre suas cabeças. Numa explosão muda, algo cai no meio deles, criando um profundo buraco. Eles olham para baixo. Através de tal buraco se pode ver algo em movimento. Algo escalando o lugar.
- Vamos dormir.
- Vamos.
- Boa noite.
A divagação, visão ou alucinação é interrompida, pois é tarde. Os quatro se recolhem aos seus leitos, mas só depois de alguns longos minutos percebem que não conseguirão dormir. Não bastou que deixassem a vila. O frio atormenta as chamas que queimam em seus corações. Não podem dormir. Não são frios como gelo, tampouco têm corações de pedra. Terminam por se levantar e reunir novamente à fogueira.
- Bom... - Cristian começa, mas não conclui, pois percebe que não há o que falar nesse momento. Durante toda a noite eles só fitam as chamas, em ressonância com seus corações.
Já é manhã, sexta-feira, o Sol nasce e sua luz serena atravessa as folhas para assumir a função da fogueira, que começa a morrer. Sem qualquer palavra, eles se levantam. Geba abre um saco onde havia depositado as frutas restantes. Tira algumas delas e joga para os outros três. Eles juntam as coisas. Lob então parte em uma direção: todos os outros o seguem.
A floresta muda a trilha sonora. Os animais diurnos começam a produzir seus sons.
- Vamos mesmo atrás dele? Quero dizer, nós levaríamos certo tempo para alcançarmos uma cidade, mas poderíamos estar mais seguros lá.
Algio ignora as palavras de Cristian. E eles continuam a seguir a trilha misteriosa, e invisível, guiados por Lob. Nenhuma palavra mais é pronunciada. Eles simplesmente caminham. Caminham até que encontram um rio. Ainda calados, bebem um pouco, atravessando-o em seguida. Do outro lado, como se já fosse planejado, eles param. Só Lob continua, pois ia à frente. Pouco depois, volta com alguma lenha.
Eles fazem uma nova fogueira, onde aproveitam a carne que sobrou da noite anterior. Algio não esquece o que vira na casa de Droole. Na verdade, a mesma melancolia é compartilhada pelos quatro viajantes. Eles perderam seu mundo, tudo o que conheciam. Mas mestre Fuolha um dia lhes disse uma coisa que tomou seus pensamentos ali, naquele instante. Era algo como nunca se entregar à dor totalmente e, quando puder, entregar-se parcialmente a ela, para estar livre quando for preciso. Talvez por isso eles não insistissem em falar ou sorrir falsas emoções.
Mestre Fuolha... De repente todos aqueles anos de treinamento antes de sua morte vêm do passado como por mágica. Algio lembra que nunca se deve lutar com ódio, pois seu mestre dizia para nunca lutar contra alguém, mas a favor de algo ou alguém, de outra forma seriam meras máquinas de lutar, sem coração.
Cristian ouve a voz de seu mestre, dizendo para nunca abandonar um amigo ou desprezá-lo mas, ao contrário, sofrer com ele e ajudá-lo a se levantar. Ele põe a mão no ombro de Algio, com um sorriso triste, mas tentando ser consolador.
Geba lembra que seu mestre falava que nem sempre a força bruta era a melhor saída. E ele sorri, sabendo que o mestre Fuolha ainda olha por eles quatro.
Lob pode ver, como se fosse hoje, seu mestre falando: "Seus instintos são sentidos além da compreensão humana. Podem fazer muito por você. Mas nunca esqueça que são, antes de mais nada, sentidos, e podem ser manipulados. Eles podem lhe ajudar muito, mas às vezes podem mentir. A única coisa em que se pode acreditar completamente é na união e lealdade de pessoas abençoadas com uma ligação que vai além do que compreendemos, talvez além do que não compreendemos. Eu vejo essa ligação em vocês." A lembrança é forte e fortalecedora, mas Lob não tem tempo para sorrir e desfrutar das sábias palavras do mestre Fuolha. Ele nota que há algo errado. Alguma coisa muito sobrenatural se aproxima. "Não pode ser o monstro, as lendas dizem que ele só ataca às quintas, como ontem..." Ele se levanta, empunhando sua espada de duas mãos. Não a de madeira, dessa vez a metálica. Os outros três notam e se armam também. Lob olha as árvores em uma direção.
- O que está havendo? - Cristian pergunta.
- Calma. - Uma voz vem dentre as árvores. - Podem baixar suas armas.
Claro que ninguém faz isso.
- Quem é você?
- Vim levá-los. Sou Uryef.
- Uryef!?! - todos exclamam, surpresos, enquanto surge um homem vestindo um manto alaranjado. Ele tinha cabelos brancos, olhar agressivo e aparentava trinta e tantos anos. A surpresa foi enorme.
Seria possível que fosse o maior mago do Fogo de toda Kairot? O mestre Fuolha já falara dele, alguns viajantes também. Se isso fosse verdade, eles estariam diante da maior lenda de Kairot daqueles dias. "Simplesmente inacreditável".
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